segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

O Lobo Diogo e o Mosquito Valentim

O Lobo Diogo e o Mosquito Valentim
A. M. Pires Cabral

           

     Assim como todo o rato deve roer; assim como todo o rio deve correr para o mar; assim como todo o mês de Agosto deve ser feito de sol, férias e alegria − assim toda a história deve ter uma moralidade. Se não tiver, é como rato que não roa, rio que não corra, chuva em Agosto.
     Pois bem. Esta nossa história tem, não apenas uma, mas duas moralidades, porque, em tal matéria, quantas mais melhor. E para que não estejam os Leitores em pulgas − é um modo de dizer... − até final do livro, a lê-lo à pressa, para descobrir as moralidades prometidas, aí vão elas declaradas desde já.
     A primeira é que a tirania, tal e qual como o crime, não compensa. Isto é: um tirano pode sê-lo durante muito tempo, tempo demais, mas, mais tarde ou mais cedo, a coisa vira − e lá vai o tirano às malvas, certo como dois e dois serem quatro. É o que se tem visto por todo o lado. E ainda bem.
     A segunda é que ninguém se mede aos palmos, seja ele homem, seja bicho. As coisas que somos capazes de fazer é que dão a medida certa do nosso tamanho. Há grandes que não fazem senão coisas miudinhas e pequenos capazes de fazer coisas enormes.
     Bom. Se calhar, bem espiolhada, a história é capaz de ter ainda mais algumas moralidades mais pequeninas, porque às vezes isto de moralidades são como as cerejas, vêm umas agarradas às outras. Mas, como estou com pressa de contar, deixo isso agora ao cuidado dos Leitores. Descubram-nas e mandem-mas dizer, está bem?, para eu as declarar depois na abertura da segunda edição.


            Vamos portanto à nossa história, que se chama "O Lobo Diogo e o Mosquito Valentim". Mas vamos por partes. E como o mosquito só aparece lá mais para o final, começo por apresentar o tristemente célebre lobo.
            Era este uma fera corpulenta e tão forçuda de membros como carniceira de instinto. Era além disso um tiranete, amigo de dar ordens e impor a sua vontade. Era invejoso e glutão. Não se lavava, cheirava mal dos sovacos e do resto do corpo ainda pior. Tinha maus modos: lambuzava-se todo quando comia e deitava perdigotos ao falar. Por fim (para coroar este cúmulo de perfeições) em matéria de esperteza, estamos conversados: era bruto como um calhau.
            Mas chegou a rei. Querem saber como?          
            Um dia, reparando nos animais que compartilhavam a vasta floresta onde vivia e reparando também que entre eles não havia nenhum capaz de lhe fazer sombra no que respeitava a força e malvadez, resolveu proclamar-se a si mesmo rei daqueles lugares, com todos seus regatos e clareiras, bosques e silvados, e exigir os privilégios e regalias devidos à sua nova e alta posição.            
            Subiu pois a um fraguedo enorme que havia bem no centro da floresta, acompanhado do burro Borromeu, que tinha nomeado seu cabo-de-ordens. Quando lhe parecia, puxava a cauda do burro para ele ornear, pedindo a atenção dos animais, e punha-se a vozear lá do alto:
            - Bichos destes lugares, que vivestes até aqui à lei da natureza, sem rei nem roque! Sabei que, doravante, já tendes rei a quem obedecer. Esse rei sou eu, que resolvi sacrificar-me ao bem comum e tomar sobre os meus ombros o pesadíssimo encargo de vos governar.
            (Foi aliás desta maneira, pouco mais ou menos, que a maior parte dos reis se fez.)
            Os animais, estupefactos com a proclamação, enviaram ao lobo uma embaixada com a missão de lhe fazer ver que não precisavam de rei para coisíssima nenhuma, pois viviam muito bem assim livres e fraternos, e que o rei (se fosse preciso haver um rei algum dia) devia ser criatura escolhida a gosto de todos.
            Não valeu de nada. O lobo Diogo, para mostrar o seu desprezo pela reclamação, começou por devorar os embaixadores, um por um. Depois, pôs-se a passear pela floresta, cheio de pompa, com grande estrondo de arrotos e exibindo provocatoriamente, no cocuruto da cabeça, uma coroa real feita de ramos entrançados. Aquilo nem um paxá, levado em padiola por escravos!
            Os animais compreenderam então que não havia volta a dar-lhe e submeteram-se. Nesse dia, muitos deles tinham lágrimas nos olhos e não foram dois nem três que emigraram daquela floresta, para bem longe das fronteiras do reino de el-rei D. Diogo.
            Para cúmulo, cedo descobriram que o lobo reinava desastradamente e a capricho, sem se preocupar tanto como um dedo mindinho com o bem-estar dos súbditos. A harmonia dos bons velhos tempos desaparecia e havia cada vez menos justiça, paz e pão para todos.
            Mas os animais da floresta ainda suportavam, embora lhes custasse, a incompetência do lobo para governar. Agora o que não podiam suportar de maneira nenhuma era o costume que ele tinha de zombar de tudo e de todos, da maneira que já veremos. Mas se alguém, mesmo respeitosamente, ousava fazer-lhe algum reparo, o lobo arreganhava a dentuça, rosnava uma ameaça, desferia mesmo a sua patada raivosa − e ficava tudo como dantes. Só o descontentamento do povo é que crescia, crescia, crescia, no silêncio forçado, como uma flor humilde que, mais tarde ou mais cedo, tinha de dar o seu fruto. 
            Enquanto isso, o lobo Diogo refinava na sua tirania e desvergonha.


            Vamos agora à tal zombaria.
            Uma das coisas que mais divertiam o lobo era obrigar os desafortunados bichos a jogar um jogo muito idiota que ele mesmo tinha inventado. O jogo era simples (nem do bestunto de fera tão estúpida podia sair coisa alguma complicada, já se vê) e, jogado com lealdade e brandura, podia até calhar que fosse divertido. Mas assim, jogado contra vontade e da maneira violenta como o lobo gostava, é que não tinha mesmo gracinha nenhuma, antes pelo contrário. Isto é: graça teria, mas só para o lobo Diogo, que no fim ria a bandeiras despregadas, dando na barriga grandes palmadas de contentamento. Agora para as vítimas...    
            Consistia o detestado jogo nisto:
            O lobo escondia-se atrás de uma moita, na borda de um caminho, e esperava que qualquer animal desprevenido, levado na sua vida, trupa-trupa, por ali passasse. Então, no momento certo, o lobo dava um urro medonho, saltava para o meio do caminho e bradava:
            - Alto lá, ó amigo!
            Escusado será dizer que, com semelhante rompante, a vítima ficava logo a tremer como varas verdes. Mas o jogo não ficava por aqui. Oh, se fosse só isso... Não. O tirano queria mais. E, sem lhe dar tempo a dizer bus, perguntava:
            - Sabes quem eu sou?
            - Sei, sim senhor − gemia o desinfeliz. − Vossa Majestade é o lobo D. Diogo, rei e senhor destas florestas.
            - Muito bem − assentia o lobo. − Agora, já que és tão espertinho e sabichão, vais jogar um jogo comigo. É muito simples. Primeiro, dás-me tu uma bofetada a mim. Em seguida, dou-te eu uma a ti. Percebido?
            De que valia ao desgraçado dizer que não? Ali não havia escapatória: ou entrava no jogo, ou arriscava-se a ser devorado... E, embora contra vontade, toca a jogar. Simplesmente, o que é que acontecia? Acontecia que o pobre bicho dava ao lobo uma bofetadazinha assim muito ao de leve, sem fazer doer, não fosse a fera enfurecer-se e fazê-lo logo ali em picado. O lobo é que não estava com cerimónias: nada agradecido com os bons modos do outro, respondia com semelhante lambada que o desgraçado ia pelos ares, enrodilhado, cair a cinquenta passos de distância, sujeito a partir osso ou a rachar a cabeça, ou ainda a ficar com alguma mossa por dentro, que são as piores.
            Era assim o jogo, invariavelmente. E, enquanto o pobre se arrastava depois como podia para casa, e muitas vezes para o hospital, o figurão do lobo ria-se muito alarve da façanha e voltava a aninhar-se atrás da moita, à espera de nova vítima. Aquilo era um autêntico vício. Nada podia divertir mais sua majestade. Já vêem que casta de selvagem era Diogo.
            Está bom de ver que esta situação não agradava mesmo nada aos habitantes daquelas redondezas. Que admiração! Quem é que gosta de se ver travado assim no seu passo, frente a frente com um bestigo daqueles, e, às duas por três, encontrar-se a voar sem paraquedas e com a bochecha feita num bolo? É que o monstro não poupava ninguém, novo nem velho, grande nem pequeno, doente nem são. Havia ocasiões em que chegava a atravessar-se no caminho dos bichinhos que iam para a escola, imaginem!, e obrigava-os a entrar no jogo! Tal era o vício e a maldade!
            Então, e os bichos não faziam nada?
            Os bichos, coitados, murmuravam, murmuravam, mas não passavam disso. E mesmo essa murmuração tinha de ser feita entre dentes, pois suspeitava-se de que, entre eles, havia alguns que estavam disfarçadamente ao serviço do herodes e lhe iam meter tudo nas orelhas. Ah, tinha de haver; porque, de quando em quando, algum dos que ousavam protestar levava sumiço misteriosamente. O que seria, o que não seria, por onde andará fulano, que há tanto tempo que se não vê − o certo é que desapareciam sem deixar rasto. Não faltava quem pensasse que esses imprudentes tinham a mesma sorte dos embaixadores, lembram-se? Isto é, iam parar ao bucho de el-rei. E como semelhante destino não agradava a ninguém, os animais encolhiam-se no medo e iam murmurando, murmurando apenas. O terror reinava na floresta e o lobo andava radiante, lustroso e anafado.


            Entretanto, todos os dias vários animais iam receber tratamento ao hospital, por terem tido a sorte macaca de um encontro com o lobo. Quando este estava mais reinadio ou mais ardido de vício, aquilo então era um verdadeiro corropio à porta da urgência do hospital e os bichos-doutores não tinham mãos a medir. Chegavam a esgotar-se as ligaduras, o adesivo e a tintura de iodo. Os fabricantes de muletas enriqueciam. Chegou a coisa a termo que, nos reinos de el-rei D. Diogo, eram já mais os estropiados do que os escorreitos.
            - Isto assim não pode continuar! − bradou um dia Policarpo, o porco-espinho, em plena clareira.
            Tinha razão de ser, a sua indignação. Policarpo acabava de saber que o lagarto Dagoberto recolhera de maca ao hospital, depois de um malfadado encontro com o lobo, e encontrava-se em estado de coma, entre a vida e a morte. É preciso dizer que Dagoberto era o seu melhor amigo, com quem gostava de jogar a bisca e travar longas cavaqueiras ao sol, a falar disto e daquilo e a saborear o calorzinho.
            No seu desespero, Policarpo até foi imprudente, pois aquele desabafo, largado assim em voz alta em plena praça pública, podia valer-lhe uma guia-de-marcha para parte incerta... Felizmente, não havia ali nenhum informador do lobo. Havia, isso sim, outros animais igualmente indignados, mas impotentes para porem cobro à situação. Pois quem ousava fazer frente a D. Diogo?
            - Ninguém se atreve − murmurou, em voz trémula, uma velha lebre.
            - Pois se ninguém se atreve, atrevo-me eu − proferiu o porco-espinho, com determinação. − E vai ser hoje mesmo!
            - Homem, tu vê lá no que te metes... − disse o rato Fortunato.
            - Isso é cá comigo.
            E dirigiu-se para casa, a fim de executar um plano que tinha congeminado. Chegado lá, pediu à mulher que lhe atasse com ligaduras ambas as patas dianteiras.
            - Logo as duas? − estranhou a mulher. − Caíste nalguma armadilha ou quê?
            - Qual armadilha, qual carapuça! Isto faz parte cá de um plano para dar uma lição ao lobo Diogo. Anda-me lá com isso para a frente, mulher!
            À voz de lobo Diogo, ficou a mulher alarmada e rompeu num alarido de mil demónios. Já não queria atar-lhe as ligaduras nem à mão de Deus-padre. Por fim acabou por obedecer, pois sabia que o marido era casmurro a mais não poder ser e que, quando se lhe encasquetava uma ideia na cachimónia, tinha de a levar por diante, desse lá por onde desse. Mas quando Policarpo partiu à cata do lobo, ficou ela a tremer como de maleitas e a implorar ao deus dos porcos-espinhos que tudo acabasse em bem.


            Não precisou o porco-espinho Policarpo de procurar muito para encontrar sua excelência. Estava num dos seus poisos preferidos, um atalho muito passeado de lebres e coelhos. O dia tinha-lhe corrido bem: mandara já pelos ares nada menos de duas raposas, uma doninha, três coelhos, seis lebres, um javali e um texugo − além de uma cobra que, coitada, deu um nó sobre si própria enquanto ia pelos ares, e ainda não se tinha conseguido desatar. Uma tarde, pois, cheia de emoções para o lobo. Mas como era muito difícil de fartar e queria sempre mais, o maroto aguardava ainda a passagem de mais meia dúzia de bichos, antes de se dar por saciado e regressar ao palácio real.
            "Lá vem outro", pensou, todo satisfeito, ao ouvir o farfalhar dos picos de Policarpo roçando nos arbustos da beira do caminho. Aninhou-se, a formar o salto, e, quando viu que era tempo, zás!, deu aquele rugido medonho e pulou para o meio do caminho. O costume.
            - Alto lá, ó Zé dos Picos! Onde julgas tu que vais?
            - O meu nome é Policarpo − corrigiu o porco-espinho, em tom respeitoso. − Com licença de Vossa Majestade, vou em viagem de negócios.
            - Ias. Mas primeiro tens de jogar um jogo comigo.
            - Saberá Vossa Majestade que levo um nadinha de pressa...
            - Não quero saber de pressa nem meia pressa. Aqui quem manda sou eu, e tu obedeces. Caso contrário...
            - Pronto, pronto! Se Vossa Majestade faz assim tanta questão, já aqui não está quem falou... Vamos ao joguinho!
            - Ah, assim está melhor. Ouve: o jogo é simples. É só isto: tu dás-me uma bofetada a mim. Em seguida, dou-te eu outra a ti. Depois podes seguir o teu caminho. − E, com um risinho velhaco e falando àparte, para Policarpo não ouvir: − Se não fores antes parar ao hospital, ih! ih! ih!...
            - Ah! Mas isso deve ser um jogo interessantíssimo! − disse o porco-espinho, fingindo-se entusiasmado.
            - Mal tu calculas... − respondeu Diogo, maldosamente.
            De repente, Policarpo pôs um ar muito contristado.
            - Mas... Vossa Majestade disse bofetada?
            - Bofetada − confirmou o lobo.
            - E as bofetadas dão-se com as patas dianteiras...
            - Claro está! Ou querias que se dessem com o rabo?
            - Oh, que pena tenho de não poder ser agradável a Vossa Majestade − lamentou-se, manhoso, o porco-espinho. − Acontece que ontem, por um descuido que me ia saindo caro, fui logo meter ambas as patas dianteiras na ratoeira que o bicho-homem armou ali mesmo defronte da minha toca. Felizmente pude salvar o canastro, com a ajuda da minha mulher. Mas fiquei com as mãos neste lindo estado que Vossa Majestade está a ver...
            E exibiu as patas dianteiras, todas empanadas.
            - Ora bolas! − rugiu o lobo, contrariado. − Pronto, vai-te lá então embora, já que não estás em condições de jogar. Vai-te, vai-te, antes que te coma!
            - Um momento, senhor D. Diogo! − atalhou Policarpo. − Não se amofine Vossa Majestade. Repare que nos pés nada sofri. Se não podemos jogar à bofetada, podemos jogar ao pontapé.
            - Ao pontapé?! Mas que ideia magnífica! Nunca tinha pensado nisso. Deve ser óptimo, para variar. Hum, eu pelo-me por variar! Ora deixa cá ver se eu percebi bem: primeiro, dás-me tu uma bofetada a mim...
            - Não! Um pontapé!
            - Um pontapé, pois! A minha cabeça... Dás-me um pontapé. É isso?
            - Exactamente. Em seguida, dá-me Vossa Majestade outro a mim.
            - Pois seja! − concordou o lobo, pondo logo o traseiro a jeito.
            Policarpo, recuando algumas passadas para tomar balanço, veio de lá a galope, catrapum, catrapum, catrapum, e − trupa! − arreou semelhante pontapé no rabo do lobo, que este deu um urro de cólera e dor.
            - Ah, velhaco! Vejo que gostas de jogar forte... Pois bem, tu assim o quiseste. Agora é a minha vez. Põe-te a jeito!
            Policarpo obedeceu, resignado. Sabia que o lobo não ia ter dó nem piedade e que o seu pontapé seria mais violento do que coice de mula. Mas também sabia que...
            - Ui! − ganiu Diogo, com meia dúzia de espinhos cravados no pé. − Tira-me estes picos daqui! Depressa!
            - Ah! − disse Policarpo com o ar mais sério de que era capaz, porque lá por dentro estava-se a rir como um perdido. − Lamento muito, senhor, mas tal não posso fazer. Ouvi dizer a meu avô, que Deus haja e era muito entendido em mezinhas e benzeduras, que são precisos cuidados de doutor para arrancar um pico desses, caso contrário pode infectar, gangrenar e ir um sujeito desta para melhor enquanto o diabo esfrega um olho. Ora eu sou negociante, não sou médico. Tem pois Vossa Majestade de procurar doutor que lhos arranque. E agora, se me dá licença, cá vou à vidinha, que se me faz tarde...
            E abalou, muito lépido, deixando o lobo a uivar de dor e a manquejar, caminho do hospital, sobre três patas − a quarta balouçando no ar, com meia dúzia de picos espetados, e tão bem espetados, que foi precisa uma operação com anestesia geral para lhos retirar.


            Quando o povo soube do sucedido, houve grande algazarra de satisfação. Alguns saíram para a rua, a festejar a proeza de Policarpo com descantes e contradança. Havia quem achasse que tinha sido remédio santo e que o lobo Diogo tinha levado uma ensinadela para o resto da vida. O porco-espinho foi muito vitoriado e viu-se mesmo a certa altura levado em ombros, em triunfo, como o bicho-homem costuma fazer aos seus heróis da tourada e do futebol.
            Mas a verdade, a triste verdade, é que aquela alegria foi sol de pouca dura. Porque quem torto nasce, tarde ou nunca se endireita, tal e qual como o pepino das hortas. E também não é menos certo que burro velho (ou lobo velho, tanto dá) não toma andadura. O lobo Diogo levou, é certo, umas boas semanas para sarar da pata, e só lá foi a poder de muitas cautelas e caldos de galinha. Mas o certo é que coisa ruim não tem perigo. Lá conseguiu arribar e, mal se sentiu com forças, logo tornou ao vício de antigamente.
            E a floresta em peso voltou a preocupar-se com o caso. O povo andava outra vez revoltado.
            - Nada, isto não pode ser − diziam entre si os animais, murmurando pelas esquinas. − O diabo do lobo dá cabo de nós. Patas e costelas partidas é o que mais se vê por aí. Alguns têm ficado gagos com o susto: é o caso do gato Renato, que agora mia assim: «Mi-mi-mi-mi-mi-au!» Outros, mais infelizes, perdem de todo o juízo e andam por esses caminhos a dar com a cabeça nas paredes. Cada vez há mais sofrimento por essas tocas fora. E não é o primeiro nem o segundo chefe de família que tem batido a bota, deixando mulher e filhos na penúria. Tudo à conta do brinquedo do lobo. Isto não pode continuar. Temos de nos livrar desta alimária, dê lá por onde der.
            Estas coisas são boas de dizer. Mas do dizer ao fazer vai uma distância muito grande. Ainda pensaram os bichos em juntar-se todos (pois não é verdade que a união faz a força?) e, fazendo das tripas coração, cada qual usando as armas que Deus lhe deu − o veado com os chifres retorcidos, o porco-bravo com as presas recurvas como punhais, a raposa com a dentuça afiada que nem serrote, e assim por diante -, dar guerra ao lobo. Quem sabe se com um pouquinho de sorte o não mandavam desta para melhor?            Chegaram a organizar, por duas ou três vezes, um batalhão e a marchar sobre o palácio real, sob o comando da doninha Doroteia, valente capitoa, muito entendida em assuntos militares. E a verdade é que, a princípio, ainda marchavam com rópia e garbo, esquerdo-direito, um-dois, esquerdo-direito, um-dois. Mas, passados cem metros, dava uma dor de barriga a este; aqueloutro lembrava-se de repente que tinha uns afazeres urgentes a tratar... Segue-se que, ainda o palácio do lobo estava a mais de légua, já a doninha Doroteia se via a marchar sozinha, sem ninguém a quem dar vozes de comando. «Isto assim não vale a pena», resmungava ela, e voltava para trás. Resultado: ficou sempre tudo em águas de bacalhau. De forma que as coisas continuaram por muito tempo ainda neste pé.


            Até que um dia rompeu outra vez grande falatório na clareira. Não houve bicho que não saísse à rua, a comentar com indignação a última façanha do tirano.
            Imagine-se que não tivera pejo de obrigar a entrar no seu jogo odioso − quem? Nada mais nada menos do que Minervino, o corujão velho, que, da idade, já nem podia voar e mesmo no chão mal se arrastava já, amparado a um porretinho de marmeleiro. Pois quisera a má sina do corujão que passasse pelo poiso do lobo e este, esquecendo-se de que a veneranda ave havia sido o seu mestre das primeiras letras, intimou-a a jogar. De nada valeu ao bom velhinho suplicar mercê, mostrar as asas tolhidas do reumático. O lobo nesse dia estava com azar, ainda não tinha feito o gosto ao dedo e ardia de vício. Lá teve Minervino de entrar na brincadeira. Depois, foi aquilo que se sabe: o lobo arreou-lhe semelhante estalada, que o pobre bateu todos os recordes e foi cair desamparado a oitenta passos dali, para mais que não para menos, no meio de uma revoada de penas soltas (que serviram ao arganaz Brás para encher um colchão). Levado à pressa para o hospital, Minervino estava mesmo a despedir. E, como era bicho benquisto de todos, por sua sabedoria e bondade, o povo fervia de indignação.
            Não tardou que se armasse uma espécie de comício, onde, depois de expulsarem o bufo Rufino, tido por informador do lobo, todos falaram abertamente. E, no fim, estavam todos concordes: era preciso liquidar a besta-fera, antes que ela os liquidasse a todos.
            Pois sim. Mas como se liquida uma avantesma daquelas? A doninha Doroteia lembrou gravemente as tentativas passadas e foi de opinião que pela força jamais iriam lá das canetas. Em todo o caso, disse ainda que por vezes mais podem o jeito e a manha do que a força: já se tem visto o fraco ardiloso levar de vencida o grandalhão bruto. Era questão de aparecer uma cabeça sensata que engendrasse um plano capaz. Mas quem? Ah, que falta fazia ali agora o corujão Minervino, único na floresta com miolos para semelhantes áfricas... Mas esse, coitado, àquela hora quem sabe se não teria já entregado a alma ao criador?
            Que fazer, pois?
            Estavam os bichos nestas congeminações, ouviu-se um zumbido fino. Era Valentim, o mosquito. Atraído pela vozearia desalterada, vinha saber por que razão andava toda a bicharada de alevante.
            Devo dizer aqui que os bichos, no geral, não simpatizavam lá muito com o mosquito Valentim. E tinham a sua razão: ele vinha muitas vezes importuná-los, noite velha, para lhes chupar, com a sua seringa, a gotinha de sangue de que se alimentava.   Além disso, que tinha ele que cheirar ali? Aqueles assuntos não eram com mosquitos, pois o lobo só se encarniçava contra bicho a que pudesse quebrar osso e que tivesse focinho para levar uma lambada, desprezando criaturas mesquinhas como são os insectos do ar e os vermes da terra. De forma que o receberam com cinco pedras na mão.
            - Que vens tu cá fazer? − perguntou a lebre Irene de mau modo, pois as suas longas orelhas eram um dos alvos favoritos de Valentim e andavam sempre cheias de ampolas, das picadas do mosquito. − Isto não são assuntos teus. Andor!
            - Nunca se sabe − tornou o mosquito. − Às vezes os pequenos entram em lugares onde os grandes não cabem, nunca ouviste dizer? Quem sabe se não poderei dar-vos uma ajuda?
            - Tu?!... − exclamou a lebre, divertida. E em voz alta, para todos ouvirem: − Ouviram? O mosquito quer dar uma ajuda, ah, ah, ah!
            Muitos bichos riram-se também do desconchavo, apesar da grande tristeza que reinava. Então não era caso para rir − o mosquito oferecer os seus préstimos para enfrentar o lobo?
            Todavia, mal andaram em troçar do valente Valentim, como se vai ver. Porque os bichos, tal como os homens, não se medem aos palmos. E foi afinal isso que o mosquito Valentim, enchendo-se de brios, resolveu mostrar àquela tropa fandanga. E disse:
            - Pois bem. Trata-se de dar cabo do lobo, já percebi. E vós, embora sendo muitos e grandes, não tendes peito para tanto. Mas ides ver quanto vale um mosquito. Vou eu tratar-lhe da saúde, para que se saiba nastes campos e montados que o mosquito Valentim fez sozinho o que os outros bichos todos juntos não se atreveram sequer a experimentar!
            E largou veloz à cata do lobo, com o seu zumbido fino a esfiapar-se num riso escarninho, deixando tudo boquiaberto, não sabiam se da bravura, se da desfaçatez de Valentim. Alguns bichos não resistiram à curiosidade e desataram a correr atrás dele, pois queriam ser testemunhas do que acontecesse, para o melhor ou para o pior.


            Palpitou a Valentim que o lobo Diogo estivesse a essa hora por detrás de tal moita, um poiso muito do seu agrado, na borda do caminho principal da floresta, onde já o tinha visto muitas vezes. E não se enganou: lá estava o figurão agachado, roidinho de vício, à coca do primeiro desgraçado que a sorte mofina levasse por aquelas bandas.
            "Ai, estás aí? Espera lá, que já vais ver como elas mordem...", pensou o mosquito para com os seus botões. E, sem cerimónia, fez uma acrobacia floreada e foi-lhe pousar com toda a precisão na ponta do nariz. Nem um helicóptero!
            - Olá! Que temos aqui? − rosnou Diogo, revirando os olhos a tentar enxergar que raio de coisa lhe tinha pousado no extremo do focinho.
            - Sou eu! − respondeu Valentim com arreganho.
            - Tu, quem?
            - Valentim, o mosquito!
            - Não conheço, nem dou confiança a mosquitos − proferiu o lobo, enfadado. − Mas pronto, estás apresentado. Agora, se não queres mais nada de mim, ala!, desanda daí para fora, que me estás a fazer muita comichão. Vá, some-te!
            - Hei-de-me sumir quando eu muito bem entender − retorquiu o mosquito.
            - Pois quê?! Ousas desobedecer ao teu rei?!...
            - Ouso isso e muito mais! Não saio daqui antes de cumprir a minha missão.
            - E qual é a tua missão, pouco mais ou menos?
            - Vingar os animais do bosque.
            - Vingar os animais do bosque?! − perguntou o lobo, entre divertido e furioso. − Tu, um simples mosquito?!...
            - Eu mesmo. Não acreditas? Pois jurei vingá-los das tropelias que lhes tens feito, a começar pelo jogo da lambada. Vais pagar caro a tua malvadez. Prepara-te!
            O lobo achou que tanto atrevimento passava as marcas. Se a bicheza toda junta nunca pudera nada contra ele, que poderia aquele insecto desprezível, a mais mesquinha das criaturas, a quem um sopro seu podia fazer ir pelos ares ou um só dedo da sua patorra podia reduzir a papas? Furibundo, rouquejou:
            - Tu é que vais pagar caro a ousadia!
            E com a pata dianteira vibrou um golpe sobre o próprio focinho, cuidando derrubar Valentim. Mas já este, ligeiro como uma libelinha, levantara voo e, descrevendo uma pirueta imprevista, se lhe enfiara por uma narina adentro. E então é que as coisas aqueceram. Bufava Diogo como um touro, forcejando por despejar tão indesejável inquilino. Mas Valentim tivera artes de se agarrar tão bem agarrado a um pêlo do nariz do bruto, que nem que soprasse ali um tufão dos mares da China!
            - Não! Aí não, por favor! Fazes-me muitas cócegas! − implorou o lobo por fim, desistindo de o desalojar da venta.
            - Arrependes-te das patifarias que tens feito?
            - Não me arrependo de coisíssima nenhuma! − vociferou Diogo.
            - Pois bem, tanto pior para ti. Até aqui brincavas à tua maneira. Mas à tua maneira não posso brincar eu, porque não tenho mão com que dê bofetada nem focinho onde a leve. De forma que vamos a outro jogo, mas agora à maneira cá do rapaz. Vamos: toca a dançar o corridinho!
            E, sempre agarrado ao pêlo como lapa a rochedo, Valentim entrou a vibrar com as asas, multiplicando por mil as cócegas e os tormentos no nariz do brutamontes. Cócegas tão insuportáveis, que o lobo desatou a espirrar, a espirrar, a espirrar como louco. Bem queria ele suplicar ao mosquito que parasse, pois estava pronto a prometer este mundo e o outro, só para se ver livre daquela tortura. Mas os espirros eram tão estrondosos e tanto a fio, que não conseguia articular palavra. Reboavam os atchins pela campina e os bichos todos, passados de terror e pasmo, punham-se de nariz no ar, a escutar se porventura seria o fim do mundo que lá vinha ou o céu que caía aos trambolhões. E os espirros não paravam. Deitou então o lobo a correr, desatinado, sempre a espirrar, atchim, atchim. atchim, como se em cada espirro se lhe esvaísse um pedacinho de vida. E, com efeito, depois de muita correria e cambalhota à toa, sempre a espirrar, atchim, atchim, o lobo Diogo tombou para o lado, esticou três vezes o pernil e expirou. Morreu de tanto espirrar!
            Os bichos testemunhas nem queriam acreditar no que os seus olhos viam. Foram-se à fera, com mil cautelas, não fosse ressuscitar. Apalparam-lhe o pulso, reviraram-lhe os olhos, deram-lhe piparotes no focinho, a ver se estaria bem defunto. Quando finalmente se capacitaram que sim, que o lobo Diogo tinha ido desta para melhor, loucos de alegria, romperam logo ali em grande algazarra, que depressa atraíu a restante bicharada. Em torno do cadáver do tirano, armaram então uma dança de roda. A pega Josefa, que tinha as suas artes de poetisa repentista, botou ali mesmo uns versos, que o rouxinol Heitor musicou de pronto:

                                               Este Valentim
                                               Foi um valentão:
                                               Livrou a floresta
                                               Do lobo vilão.

                                               Do lobo vilão
                                               E da tirania.
                                               Viva o Valentim,
                                               Herói deste dia!

            Não eram grandes versos nem grande música, porque foram ambos feitos à pressa; qualquer dos artistas era capaz de bem melhor. Mas o que importava ali era a alegria que ia na alma de todos. E entre vivas e oxalás passaram o resto do dia e a noite, mais os três dias e as três noites seguintes. Folguedo assim jamais se vira naquela floresta. Tal era a satisfação!
            O mosquito Valentim, claro está, foi muito felicitado por todos, incluindo a lebre Irene, arrependida de ter duvidado. E todos, em sinal de gratidão, o proclamaram herói nacional e quiseram fazê-lo rei. Mas Valentim não aceitou.
            - Nada, amigos, não nasci para político.
            - Então como te havemos de pagar?
            - Pagar? Basta uma gotinha de sangue de vez em quando... Percebeis?
            Os bichos perceberam. E todos (incluindo a lebre Irene) lhe prometeram que, dali em diante, sofreriam com paciência a picadinha da seringa com que ele, Valentim, os viesse picar, alta noite, para matar a sede.
            Com paciência − e sem sapatada...